sábado, 19 de outubro de 2013

Careta

   
    Não entendo. Ela, que nunca tinha visto na vida, olha para mim faz uma careta e me dá língua. Verdade que aquela senhora ao natural já não era bonita, fazendo careta então. Não estou aqui julgando a beleza de ninguém, estou somente declarando a minha fascinação e estranheza para com o ser humano.
    Toda semana me dirijo à rodoviária para viajar para a minha cidade e no período que lá permaneço, cerca de duas horas, observo os seres que por ali passam. Pessoas calmas, stressadas, sérias, risonhas, preocupadas, bonachões, mulheres levando seus filhos, muitas vezes aos gritos, jovens que estão começando a viver, velhos que há muito já não vivem. Não sei ao certo em que categoria me enquadro, talvez seja apenas um observador que, como percebo, também é observado.
    É curioso notar que aquelas pessoas provavelmente nunca mais se encontrarão, que aquela disposição de seres é única, única como uma impressão digital, num curto período de tempo irão se separar, cada um seguindo a sua jornada. É lá que se encontram os amigos instantâneos. Você pergunta a hora ou faz algum comentário sobre o atraso do ônibus e dali a pouco já está escutando sobre a viagem de férias ou a história de família de alguém. Foi assim que conheci um garoto que iria tentar vestibular, uma garota que faz engenharia civil, una jovem senhora de 56 anos , muito culta por sinal, e as histórias do seu filho. Outra vez, um rapaz que estava estudando inglês pois ia ser voluntário na Jornada Mundial da Juventude. Lembro-me ainda de ir conversando com um jovem corredor que iria participar de uma corrida no Peru, um outro era aspirante a odontólogo. Alguns destes ainda encontro vez ou outra.
    Uma cena que lembro bem era a de dois garotos, deviam ter dois ou três anos. Eles não se conheciam, um estava com uma bola brincando então o outro chegou perto para brincar também. Verdade que o menino dono da bola não quis brincar com o outro e este começou a chorar. O que mais me fascinou foi a espontaneidade da criança ao chegar perto da outra para brincar. Não possuía a desconfiança, cuidado e polidez de um adulto ao se aproximar de outro. Somente se aproxima e pronto. Me pergunto quando perdemos essa espontaneidade.
    Continuo observando, recortando e tentando montar essa colcha de retalhos que é a vida, tentando extrair um pouco dessa complexidade sem nunca perder o fascínio, mas o que ainda não entendo é o porquê daquela senhora, quando eu estava a caminho da rodoviária, ter feito uma careta e dado língua para mim.
   

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Dia de Domingo

   
- O quê? Mas o rio é todo poluido! Como vou mostrar “a alegria de um domingo a tarde” ? Tenho que me virar? Certo, certo.
    Seu nome é Bing, escolha do pai enquanto jogava palavras cruzadas, repórter formado pela universidade a distância de sorocabinha do norte. Estava nesse momento discutindo com o seu editor, que o estava mandando fazer uma matéria sobre “a alegria de um domingo a tarde” em um rio da região onde as pessoas iam se divertir nos fins de semana. O problema era que o rio não estava tão, digamos, habitável.
    Não havia discussão, o chefe falou que ele teria que ir de todo jeito e assim ia ele para o local.
    - Isso. Aqui está bom para iniciarmos a gravação. - Bing dava as instruções ao seu câmera.
    O local não era o que poderíamos chamar de paraíso perdido. O rio estava cheio de cágados, deve ter havido uma grande orgia para explicar toda aquela prociação, talvez por causa dos degetos do novo refrigerante lançado. Objetos flutuantes populavam o rio, desde garrafas pet à um sofá vermelho que estranhamente girava como se tivesse vida própria. As pessoas povoavam a margem. Observando rapidamente podia-se identificar um garoto amarelo vendendo dudu andando de um lado para o outro, um senhor com uma vara de pesca e um cachorro ao lado, uma senhora, muito fina por sinal, embaixo de um garda-sol, uma criança que não parava de correr com um ursinho de pelúcia numa das mãos.     Mais ao fundo um curioso senhor, deitado em uma cadeira de praia, lê um livro. Curioso porque ele parecia não estar notando todo aquele tumulto.
    Duas garotas, que se não fosse pelo som alto da música que tinham colocado poderíamos achar que estavam tendo convulsões voluntárias de terceira gandeza, se divertiam enquanto esperavam o provável namorado de uma delas preparar o churrasco.
Bing se preparava para iniciar a reportagem.
    - Olá pessoal, na reportagem de hoje iremos acompanhar o dia em um dos locais mais visitados nos fins de semana. O famoso rio Ipojuca. Todos os fins de semana é repleto de visitantes que vêm para se divertir, descansar ou simplesmente sair um pouco da rotina semanal.
Observem a beleza do local.
O câmera mostra o rio onde mais um sofá descia dessa vez com uma televisão em cima dele.
    - Mark, vamos gravar essa parte novamente.
    O câmera, Mark era seu nome, se prepara novamente.
    - Observem a alegria do local.
    Agora Mark mostra,numa visão geral, as pessoas do local.
    - Iremos agora conversar com algumas pessoas para saber o quê...
    - Duuduuuuu!!!
    - Que moléstia é isso?!! - grita Bing num acesso de cólera.
    Alguém acabara de gritar ao ouvido dele. Ao olhar para o lado percebe o garoto amarelo dos dudus.
    - Dudu moço?
    - Garoto, estamos gravando não está vendo?
    - E eu estou vendendo, quer um dudu?É baratinho.
    - Não, não quero. Quero fazer minha reportagem, por favor.
    O garoto se afasta.
    - Vamos de novo Mark. Iremos agora...
    - Duuduuuuuu! - o garoto amarelo se afastava, mas ainda gritando.
    - Calma Mark, nós conseguiremos. Acho que ele já está longe, vamos continuar de onde paramos.
    Mark se posiciona.
    - Iremos agora conversar com algumas pessoas...espere, o que é aquilo?
    Várias pessoas estavam se aglomerando tentando ver algo. Bing corre para ver do que se trata. Ao chegar no foco da aglomeração, depois de vários pisões no pé e cotoveladas, Bing vê o motivo de toda aquela confusão. O pescador, que há pouco estava em pé com sua vara de pescar, se encontrava agora chorando e gritando “eu pesquei, eu pesquei”. Bing vai entrevistar o senhor.
    - Um senhor, que há pouco estava pescando, se encontra agora chorando pois conseguiu pescar algo.     Vamos falar com ele agora. Senhor, qual o motivo de tanta alegria? Compartilhe conosco.
    - Veja, veja, eu pesquei! - numa das mão o senhor exibia uma bota.
    - Mas o senhor pescou uma bota, por que tanta felicidade?
    - É que eu já tinha pescado uma, com essa agora tenho o par. - mostrando agora as duas botas.
    - Que bom que o senhor agora tem o par. Vamos continuar gravando em outo lugar Mark. - se impacientava Bing. - Vamos voltar para aquela parte. Iremos agora conversar com algumas pessoas para saber o quê existe de tão especial nesse local.
    Bing se dirige às duas garotas que continuam “dançando”, passando pelo menino dos dudus que o olha desconfiado.
    - Olá garotas. Poderia falar com vocês?
    - Quê?!Que é que esse cara tá falando?
    - Não sei Pri. Deixa eu abaixar o som. Oi moço.
    - Olá, eu poderia entrevistar vocês?
    - Nós vamo aparecer na televisão é? Bora Pri.
    - Oi meu nome é Priscila.
    - E o meu é Vanessa. Eita, falta o Kreber, meu namorado. Vem cá Kreber! É pra aparecer na televisão! - a garota grita como se fosse parir naquele momento.
    O namorado da garota se apróxima.
    - Esse local, por que vocês vêm aqui nos fins de semana?
    - Porque aqui é o máximo cara, nós traz o churrasco, coloca o som alto e as garota arrebenta. Saca só.
    “Kreber” liga o som no máximo e as duas garotas começam a “dançar”.
    - Senhor, gostaria de fazer algumas perguntas! Senhor?! - o repórter gritava mas sem resultados, a música continuava alta e as garotas continuavam naquela dança do acasalamento.
    - Vamos Mark, vamos! Vamos entrevistar aquela senhora sentada embaixo do guarda-sol.
    No meio do caminho Bing é parado por uma senhora. De touca na cabeça, avental, e o cabelo despenteado a senhora parecia bastante nervosa.
    - Seu repórter, quero fazer uma denúncia. - falava a senhora,aos cuspes, ao repórter. - Sou moradora daqui e acho tudo isso uma pouca vergonha. O rio é todo poluído, as crianças estão todas doentes e esse pessoal fica aqui com som ligado, dançando essas coisas do demônio, comendo churrasco, pescando. Isso é um absurdo. Quero que as autoridades façam alguma coisa! - a moradora agitava os braços para câmera como em sinal de ameça.
    - Minha senhora, sua denúncia foi registrada mas eu gostaria de continuar minha reportagem . A senhora poderia nos dar licença, por favor.
    - Mas eu quero denunciar!
    - Vamos fazer um acordo. A senhora vai denunciar, mas daqui a pouco. Poderia esperar aqui do lado.
    A moradora pareceu concordar pois saiu da frente da câmera.
    - Vamos Mark, falar com aquela mulher debaixo do guarda-sol.
    O repórter se dirige a fina senhora que delicadamente chupa um dudu.
    - Duuduuuuu!
    - Moleque, sai daqui! - se irrita Bing. - Olá, bom dia. Poderia entrevistar a senhora?
    - Ah sim, claro. O que o senhor deseja saber? - a elegante mulher deixa o dudu de lado e dirige a atenção ao repórter.
    - Por que a senhora vem a esse lugar? Por que esse rio é um local bom de se frequentar em um dia de domingo?
    - Ah é simples. Eu sou psicóloga e sei que é importante para mim e para minha filha frequentar locais não habituais ao nosso convívio. Além disso esse dudu é ótimo.
    O garoto amarelo olha para o repórter com um olhar de vitória.
    - E sua filha, onde está?
    - É aquela ali atrás?
    - Ah, aquela criança que ficou pulando, dando tchau e língua para a câmera durante toda a reportagem? - a garota continuava atrás, agora girando a cabeça descontroladamente. -Adorável criança. Obrigado senhora, continue apreciando o seu dudu.
    - Agora é minha vez? - a moradora continuava ali.
    - Não senhora, quando for eu aviso. Mark, falta entrevistar aquele senhor que continua a ler um livro desde que chegamos.
    Bing vai de encontro ao senhor, que inerte a tudo aquilo, lê calmamente seu livro.
    - Bom dia.
    O homem move sua atenção para o repórter.
    - Estamos fazendo uma reportagem, poderia fazer umas perguntas?
    - Sim, claro. Pode perguntar.
    - Estávamos observando. O senhor, mesmo com todo esse alvoroço ao redor, continuou concentrado na leitura desse livro. Como conseguiu? Esse local é tão relaxante assim para o senhor?
    - A questão é que eu trabalho a semana toda, então nos domingos tiro folga e venho para esse lugar para colocar a leitura em dia. Como sou uma pessoa muito concentrada, consigo fazer isso facilmente.      O problema agora é que com a chegada de vocês terei que trabalhar.
    - Como assim?
    - O homem não responde, apenas tira algo do bolso. Se parece com uma meia-calça, dessas marrons que as mulheres usam. A coloca na cabeça, se levanta e se dirige a Mark.
    - Perdeu cara, passa a câmera.
    - Hã? Como assim? - Bing não entende nada.
    - Isso é um assalto. Passa a câmera mermão! Tá surdo?!
    O ladrão toma a câmera da mão de Mark e começa a correr.
    Mark e Bing começam a correr atrás do homem e dessa vez é Mark que fala.

    - Peguem o ladrão, essa câmera foi parcelada em 36 vezes nas Casas Bahia e ainda estou na quinta parcela...